Texto, também assinado pelo juiz Rodrigo Trindade, da 4ª Região, critica decreto que abre margem para a prática do nepotismo

O jornal Folha de São Paulo destacou, na edição desta sexta (02/11), artigo assinado pelo presidente da Anamatra, Guilherme Feliciano, e pelo juiz do Trabalho Rodrigo Trindade, da 4ª Região. No texto, os magistrados criticam o Decreto 9.507/2018, publicado em 21 de setembro, que regulamenta a “execução indireta, mediante contratação de serviços da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União”.

“O decreto 9.507 cria margens para que concursos públicos sejam paulatinamente ‘substituídos’ por contratos administrativos com empresas terceirizadas, abrindo perigosa caixa de Pandora: a dos interesses pessoais dos que momentaneamente ocupam cargos de poder”, alertam os magistrados.

Confira abaixo a íntegra do texto:

Terceirização no serviço público
Risco é reabrir caixa de Pandora de interesses pessoais

Guilherme Guimarães Feliciano e Rodrigo Trindade
Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho(Anamatra)
Professor e juiz do Trabalho na 4ª Região (Rio Grande do Sul)

Como pretexto de dinamizar o serviço público federal, a Presidência da República publicou, em 21/9, decreto de regulamentação para a “execução indireta, mediante contratação de serviços da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União” (decreto 9.507/2018). Apesar da exuberância do nome, serve essencialmente para o escancaramento das mais usuais práticas de terceirização, sem as peias que existiam no decreto anterior.

A ordem constitucional inaugurada em 1988 firmou-se a partir da vontade de extinguir práticas clientelistas, nepotistas e corruptas. A impessoalidade administrativa foi alçada à condição de princípio constitucional. Reconheceu-se a necessidade de extirpar velhas e conhecidas práticas de ocupação dos aparelhos estatais com “amigos do rei”.

Nesses anos, foram grandes os esforços para a efetivação dos valores da ética e da eficiência no serviço público. A luta pela edificação do acesso justo ampliou-se no esforço para reduzir cargos comissionados e convencer que funções de confiança devem ser supridas só por trabalhadores de carreira do próprio órgão.
Nesse contexto, o concurso público tomou-se o mais importante instrumento para cumprir a promessa de impedir a apropriação privada da máquina pública. Por ele, só se tem acesso ao trabalho remunerado pelo Estado após seleção baseada em provas e títulos. Objetividade, impessoalidade, meritocracia.

O decreto 9.507 cria margens para que concursos públicos sejam paulatinamente “substituídos” por contratos administrativos com empresas terceirizadas, abrindo perigosa caixa de Pandora: a dos interesses pessoais dos que momentaneamente ocupam cargos de poder.

Na esteira da reforma trabalhista e de julgamento recente pelo STF, abandona-se o balizamento limitativo da terceirização a serviços assessórios das entidades estatais. Em inusitada marcha a ré, o texto permite inferir autorização para terceirizar de forma indiscriminada, inclusive em atividades essenciais e genuínos serviços públicos, ainda que a única finalidade seja o barateamento da mão de obra.

Recentemente, juízes e juízas do Trabalho de todo o país reconheceram em plenária que as recentes alterações de leis trabalhistas, no que toca à terceirização, não se aplicam à administração pública direta, em razão do disposto na Constituição.

Mesmo a recente decisão do STF no âmbito da ADPF n. 324, ao reputar lícita a terceirização das chamadas “atividades-fim” certamente não sufragar o descarte do conjunto de princípios constitucionais que regem a administração pública; tampouco poderá ser pretexto para a fraude, para a precarização ou para a quebra da isonomia constitucional, notadamente no marco do serviço público federal.

Apenas agentes públicos permanentes, experientes e comprometidos com a continuidade do serviço, submetidos a certames públicos, podem garantir a qualidade tão exigida pelos cidadãos.

Não por outra razão, o repasse de atribuições estatais para empresas privadas é ordinariamente associado à ineficiência, à corrupção e ao distanciamento da população.

No mito de Pandora, a curiosidade motivou a liberação dos males até então contidos no artefato de Zeus. Na Pandora brasileira, as estatísticas já revelam à saciedade o que se pode esperar da terceirização irrestrita. A questão, portanto, já não é de curiosidade, mas de moralidade. Moralidade administrativa.

Fonte: Anamatra